#52 Esboço, de Rachel Cusk

(Capa: Rodrigo Corral, Imagem: Charlie Engman, Tradução: Fernanda Abreu)

Uma autora inglesa viaja a Atenas para lecionar escrita criativa. Durante a estadia na cidade, passeia de barco com um homem que conheceu no voo, bisbilhota o apartamento que alugou, encontra amigos para jantar, conhece algumas outras pessoas e ministra aulas. Em seguida, prepara-se para o retorno à sua casa. Esse, basicamente, é o enredo de “Esboço”, de Rachel Cusk. 

         Eu não conhecia a sinopse, mas decidi ler o romance depois de ouvir maravilhas  a respeito. Foi gostoso descobrir aos poucos a estrutura incomum e a profundidade dessa obra. Enquanto lia os primeiros capítulos, me intrigou o fato de que os assuntos deles não tinham conexão, exceto por fazerem parte de conversas em que a protagonista, Faye, participa. Lá pelo capítulo IV, caiu a ficha de que esse era o diferencial do romance. Para se ter uma ideia de quão inusitada é a estrutura narrativa, o nome de Faye aparece pela primeira vez no capítulo IX, o penúltimo do livro. Em cada um dos dez capítulos, o principal papel dela é o de uma ouvinte atenta que nos leva consigo para conhecer as histórias e as neuroses de seus interlocutores. 

Li no Goodreads que esse é “um livro sobre escrita e fala” e achei uma boa definição. Mesmo assim, como em geral acontece com definições, ela deixa muita coisa de fora, pois o livro entrega também reflexões sobre família, trabalho, desilusão, enfim, a vida. Ele mostra também que a máxima “de perto, ninguém é normal” é verdadeira.

Eis as impressões de leitura:

O capítulo III, em que Faye examina o apartamento de Atenas onde se hospeda, é inteiro descritivo, algo que normalmente me tira da história (pode parecer estranho, eu sei, já que a intenção desse recurso é justamente situar o leitor, mas é meu jeitinho, o que posso fazer?). Pois ali, Cusk me mostrou que nem sempre um texto descritivo é chato.

No capítulo IV, Faye lembra de uma cena de "O morro dos ventos uivantes", em que os protagonistas olham pela janela da casa da família Linton e Heathcliff vê “aquilo que teme e odeia” enquanto Cathy enxerga “aquilo que deseja e de que sente privada”. Então a protagonista/narradora de “Esboço” faz uma analogia com suas experiências, e pensa “estava começando a ver na vida dos outros um comentário sobre a minha própria vida”. Achei genial a metalinguagem e, ao mesmo tempo, o realismo dessa passagem. Que leitor nunca se viu comparando vivências pessoais a obras literárias?

 Logo em seguida, seu "vizinho" de poltrona no avião reflete em voz alta sobre o casamento dos pais e a influência dessa relação nos três casamentos pelos quais ele próprio passou. Outro grande “Quem nunca?”. Neste caso, freudiano.

Mais adiante no mesmo capítulo, Faye faz um relato das brigas entre seus filhos. Então, coloca a visão, a meu ver, interessantíssima de que a justiça jamais pode trazer uma resolução total porque, em casos de ódio, cada um tem a própria visão, o que torna impossível uma conciliação verdadeira. E assim o livro fica mais instigante a cada capítulo.

No quinto, Faye janta com o amigo Panaiotis e outra amiga dele, Angeliki. Ele conta a Faye como se sentiu na última conversa entre eles em Londres, tempos atrás, quando ele sentia-se frustrado por um negócio que não deu certo e Faye se mostrou menos solidária do que ele gostaria naquele momento. Na visão atual dele, ela estava “ocupada em apenas ser” e por isso não foi intencionalmente cruel.

Neste capítulo, o trio reflete ainda sobre os scripts e narrativas que criamos para nós mesmos. 

As diferentes lembranças de Panaiotis e da filha de uma viagem que fizeram juntos me fez pensar no quão seletiva nossa memória é.

Entre outros assuntos envolvendo familiares, Angeliki discorre sobre as diferenças entre as expectativas dos pais e os "traumas" dos filhos. A narrativa dessa personagem de sua estadia na Polônia mostra questões psicológicas por meio das projeções em Olga, uma conhecida de lá. 

No capítulo VI, a personagem Penelope afirma que se sente "contaminada" pela sua bagagem de vida e que gostaria de conseguir ver o mundo com mais inocência. Ela tem 43 anos. Eu nem cheguei a essa idade ainda, mas muitas vezes já me sinto da mesma forma.

No livro, há dois capítulos que se passam em aulas de Faye. E como todo professor sabe, qualquer sala de aula é um laboratório com espécimes fascinantes de se observar. 

Entre os alunos da escritora há Christos, um jovem falastrão e de raciocínio desnecessariamente complexo que depois revela-se relacionado a um complexo de inferioridade com relação a seus parentes. Há Georgeou, que em determinado momento diz que pensa em como seria interessante um computador baseado em seu “vasto conhecimento". Outra visão peculiar é a de Sylvia, que encontrou no metrô um homem segurando um cachorro bonito que a "distraiu da própria vida” e a fez “sentir pouco interessante".

Uma tarefa dada por Faye aos alunos, por sinal, foi escrever uma história que contivesse um animal. Achei curioso e bonito observar que a tarefa "conversa" com cada aluno de acordo com sua personalidade e acaba por revelar aspectos íntimos deles. Uma das alunas, Clio, por exemplo, é musicista e acaba por falar de passarinhos. Por ser professora, sinto que essa revelação da personalidade dos alunos nas lições é algo corriqueiro. Justamente por isso eu esqueço de observar com o merecido fascínio. Acompanhar o olhar “fresco” da narradora de Cusk revigorou meu olhar sobre uma faceta do meu trabalho.

Por fim, no capítulo X, Faye encontra Anne, uma dramaturga que lhe relata a conversa com um homem no voo até ali. Nisso, vi um caráter metalinguístico e o fechamento de um ciclo, já que esses acontecimentos reproduzem os do início do romance. 

Pensei em dizer que, pelo fato de tantas pessoas se abrirem facilmente para Faye, o livro tem um ar de irrealidade. Numa reflexão mais profunda, contudo, me lembrei de que sempre sou surpreendida por situações assim: Pessoas que gostam de ser ouvidas por estranhos e, com o estímulo de um simples “ahã” são capazes de falar de suas questões por horas a fio, seja em filas, salas de espera ou no transporte público. Portanto a narrativa de Cusk, por mais que seja um recorte em um tempo, uma sociedade e na mentalidade desta, tem elementos realistas. 

Juntando todos esses fragmentos de histórias pessoais e reflexões das personagens, fica para mim um sentimento recorrente de que todo mundo é singular em suas excentricidades. Como disse, em outras palavras, Rosa Montero no Roda Viva, o normal é ser esquisito.


  “(...) ele estava descrevendo aquilo que ela própria não era: em tudo que dizia sobre si, ela encontrava na sua própria natureza uma negativa correspondente. Essa antidescrição, na falta de um termo melhor, tinha, graças a uma espécie de exposição reversa, deixado algo claro para ela: enquanto ele falava, ela começara a se ver como uma forma, um esboço, com todos os detalhes preenchidos em volta enquanto a forma em si permanecia vazia. Mas essa forma, ainda que o seu conteúdo permanecesse desconhecido, lhe deu, pela primeira vez desde o incidente, uma noção de quem ela era agora.” (Trecho do capítulo X)


Se “O mundo de Sofia” é o “romance da história da Filosofia”, então “Esboço” é o “romance da Psicanálise no século XXI”.

Uma opinião que gostei de ler, embora seja menos favorável que a minha sobre o romance (em inglês) aqui


Recomendo para quem curte elucubrações acerca da vida e das relações humanas.

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