#56 Dica dupla: "Bastardos e Cinzas": Lilia Guerra e Daniela Falcão

 Hoje, comento dois livros de autoras brasileiras contemporâneas. Ambas paulistas, têm em comum também romances que chacoalharam a lôka dos livros que vos escreve.


(Capa: Paula Carvalho, sobre obra de Leandro Junior)


No começo da narrativa, Doralice, Regina e Cassiana conversam sobre suas famílias. Apenas uma delas tem o nome do pai na certidão de nascimento, e essa é a única informação que tem dele.

Nos capítulos seguintes, por meio das observações e anotações que faz, Nara, ou Sá Narinha, nos apresenta um caleidoscópio com cenas da vida de moradores de Fim-do-Mundo. 

As observações da narradora contemplam a ternura das mães do local, as sucessivas gerações e o ciclo de morte, nascimento e crescimento acompanhado por ela desde a sua chegada ao bairro na juventude. Este, como aliás afirmou Lilia Guerra em entrevista, é o verdadeiro protagonista da história. O enredo mostra ainda as lembranças de família e de infância de Sá Narinha, num misto de nostalgia e tentativa de entender um grave acontecimento do passado recente pelo qual ela sente-se responsável. 


A editora Todavia define “O céu para os bastardos” como “um delicioso romance que apresenta com leveza e humanidade a vida nos becos e ruelas”. Eu editaria a frase e diria que é “um romance que apresenta com humanidade a vida nos becos e ruelas”, ponto. Lê-lo foi emocionante e, por vezes, revoltante, mas não “leve” e nem “delicioso”, embora interessantíssimo.

As cenas do presente de Sá Narinha, já idosa, misturam-se a diversos passados ‒ o da sua infância, em outra cidade, o da chegada à cidade atual (nunca nomeada, mas que interpretei ser São Paulo) o nascimento de seu filho, Júlio, e seu crescimento junto a Regina e outras crianças do bairro. A tudo isso, soma-se o tempo presente, em que as crianças cresceram e muitas já tornaram-se mães e pais. Um fio longo e emaranhado, como a vida acontece e nossa memória desfia.

Pela descrição, a cronologia pode parecer confusa, mas na verdade a narrativa da autora é singela e sem grandes artifícios além da não-linearidade. No entanto, há nela uma riqueza de elementos que revelam a dureza do cotidiano das personagens e refletem o de tantas pessoas reais.


“Essa vida é feito uma viagem, num desses ônibus de uma porta só. A gente passa o tempo todo lutando pra alcançar o fim do corredor e desembarcar no ponto certo.” 


Se você, como a maioria da população brasileira, passou (ou passa) pela experiência de pegar transporte público lotado diariamente, é capaz de sentir a força da analogia no trecho acima. Eu me identifiquei com muitas das questões das personagens do livro. Talvez por isso tenha achado a história agridoce.


Apesar de não panfletário, o livro faz uma crítica social, em especial nos momentos, vários, em que aparecem as relações entre patrões e empregadas domésticas. Em um de seus relatos, Sá Narinha subverte uma regra histórica implícita: ao dar o protagonismo à empregada doméstica Ying, nem menciona o nome da patroa desta. Betinho, o filho da atual patroa de Sá Narinha, apega-se à empregada que sempre cuidou dele e mostra-se completamente diferente de outros ricos para quem ela já trabalhou. A meu ver, esses dois pontos ilustram o brilhantismo da escrita de Guerra e a sua sutileza em narrar a desigualdade social e de relações no âmbito do trabalho doméstico.

Outro elemento social importante na trama é o da discriminação religiosa, que origina o título do romance e baseia-se em Deuteronômio 23:3. Por fim, a autora retrata tão fielmente algumas das mazelas brasileiras que até o abandono de animais é mencionado na trama.

  • não selecionada

    Apesar de tudo, o livro termina numa nota otimista que, num primeiro momento, achei contraditória. Porém, vi depois que “orna” bem com a vida do brasileiro de baixa renda, marcado por diversas dificuldades mas, por outro lado, também pela tentativa diária da superação. 

Recomendo para quem nunca pisou na periferia de uma grande cidade e para quem já conhece esse mundo e quer olhá-lo de outro ângulo.




(Editora Libertinagem, Capa: Mateus Bibiano)


Ainda criança, Domitila perdeu a mãe. Sendo apenas mais uma de muitos filhos, foi “cedida” pelo pai a um fazendeiro enquanto os irmãos mais velhos trabalhavam na roça. Na nova casa, a menina cresce no limiar entre o trabalho análogo à escravidão e a hipocrisia de ser “parte da família”. É criada junto com os filhos da casa, mas com a obrigação de servir todos ali e pagar a “generosidade” do teto e da comida que recebe. Enquanto cresce e se dá conta de seu (não) lugar no mundo, Domitila acalenta uma de suas poucas companhias de fato: A Raiva.


Sempre doi ver uma personagem jovem ser desiludida e massacrada pelas circunstâncias a ela impostas, portanto “Das cinzas de minha mãe” é uma narrativa dura. Ainda assim, há laivos de doçura proporcionados pela cozinheira da casa, Nhanhá. Apesar dela ser outra vítima daquele sistema, seu trabalho duro e indispensável e sua sabedoria acabaram angariando algum respeito naquele ambiente. O enredo tem também uma atitude inesperada de Janaína, a primeira filha de Domitila, mostrando que laços familiares, mesmo quando negligenciados por uma das partes, podem seguir fortes. Combinados esses elementos, o romance foi uma daquelas leituras que, ao mesmo tempo, me prendeu por sua fluidez e me repeliu por ser tão dolorosa.


A história da protagonista foi inspirada em acontecimentos da vida de Ana, a avó paterna de Daniela Falcão. O enredo, potente por si só, me pegou especialmente por outro motivo: identifiquei ali vários componentes da trajetória de minha avó materna, Benedita, também entregue para estranhos ao ficar órfã de mãe aos cinco anos de idade.

Eu me emocionei em algumas passagens do livro e ao escrever esta resenha. Foi impossível conter as lágrimas ao lembrar passagens tristes da vida de minha avó. Existem diferenças e semelhanças dela com Domitila. Na personalidade, elas são opostas: minha avó foi a pessoa mais cordata com quem já convivi, a mais paciente e resignada. O que não passa, claro, de outra forma de reação extrema a todas as humilhações e os maus tratos que viveu.  Domitila escolheu A Raiva, Benedita, A Submissão. 

A propósito, adorei como a autora, ao grafar as iniciais do nome do sentimento em maiusculas, atribui a ele uma vida própria. Acredito que, além de combustível para ações positivas ou negativas, a raiva pode mesmo crescer e tornar-se tão distinta da pessoa que o vivencia a ponto de criar certa independência.


Elas eram o que eram, e viviam conforme a verdade nascida do legado dos úteros.

(página 16)


Domitila, já adulta, abandona os próprios filhos e assim os joga no redemoinho do sistema em que ela própria foi forçada a viver. As atitudes de minha avó foram diferentes das da protagonista, mas os efeitos da história familiar são nítidos na criação de minha mãe e na formação da personalidade desta. Como o fio estendido do abandono de minha avó impacta a minha personalidade e as minhas atitudes agora, duas gerações depois? Desde que terminei a leitura me pergunto isso. Outra questão despertada pela leitura foi: O quão comum já foi, na realidade brasileira, famílias serem dispersadas assim? 

Eu não me refiro a casos, igualmente tristes, em que a família de origem não tem condições financeiras de manter uma criança.  Falo da violência de genitores do sexo masculino que entregaram suas crianças para estranhos e nos desdobramentos disso, em especial  na vida das meninas que passaram pela experiência. 

Creio que atualmente, com todos os debates a respeito de violências e preconceitos por gênero, as histórias de meninas sendo entregues feito pacotes para estranhos/desconhecidos merecem ter suas histórias narradas também. Deve haver todo um universo de Anas, Beneditas e Domitilas do qual a maior parte de nós nem faz ideia, mas cujas descendentes herdam complexos e sentimentos negativos provenientes do abandono paterno. 


Mesmo que o histórico da sua família seja diferente daquele de Domitila, a leitura de “Das cinzas de minha mãe” pode ajudar a pensar no papel que antepassados e, acima de tudo, a perpetuação de ideias e costumes exercem em nossas crenças  de que hábitos e  crenças sejam algo “natural” e não construído.

Apesar do tema espinhoso, o livro prende a atenção com suas personagens bem delineadas e a escrita ágil e cortante de Daniela Falcão. Tem 114 páginas absolutamente devoráveis. 


Recomendo para apreciadores de ficção histórica e interessados no tema da ancestralidade. Além disso, para mulheres, todas.

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