#53 O mundo assombrado pelos demônios, de Carl Sagan

 

Tradução: Rosaura Eichenberg

Capa: Jeff Fisher


Eu já tinha ouvido falar inúmeras vezes de Carl Sagan como um grande divulgador científico, principalmente por ele ter sido co-roteirista e apresentador da primeira versão da série “Cosmos” em 1980 ‒ da qual vi trechos. O mais perto que eu havia chegado da obra do astrônomo, porém, tinha sido ao assistir a adaptação cinematográfica de seu romance “Contato” no final dos anos 90. (Aliás, ao rever o trailer do filme agora, me perguntei o que Sagan diria, caso ainda vivesse, a respeito do maravilhoso “História da sua vida e outros contos”, de Ted Chiang, cuja história título foi a base para outro filme que adorei, “A chegada” ‒ de 2016.)

De volta ao livro de hoje, eu buscava na biblioteca uma leitura longa para as férias e dei de cara com “O mundo assombrado pelos demônios”. Quando li a quarta capa, alguma coisa fez “clique” e eu trouxe o livro comigo. Em tempo: as férias duraram 15 dias, mas a leitura me acompanhou por mais de um mês.

A obra é uma compilação de artigos publicados anteriormente e reunidos em livro em 1995. Fica evidente logo no início do livro a atualidade das reflexões de Sagan mesmo após praticamente trinta anos. Algo tão empolgante quanto deprimente e que cheguei a comentar aqui.

Uma característica marcante da escrita de Sagan é o fato dela ser didática e, ao mesmo tempo, não subestimar a inteligência do leitor. Isso torna o conteúdo facilmente assimilável, por mais cabeludo que seja o ponto explicado, e sua leitura, imersiva. Assim, “O mundo assombrado…” pode ser lido por qualquer pessoa interessada nos diversos temas ali tratados, a saber: astrofísica, (a inexistência de) evidências de vida alienígena inteligente, o ensino das ciências, ceticismo, a dicotomia ciência X religião e até, veja só, a Inquisição.

Três dos 25 artigos presentes na edição foram escritos em parceria com Ann Druyan, então secretária da Federação dos Cientistas Americanos e esposa de Sagan. Quase toda a primeira metade do livro dedica-se a demonstrar que, por mais que o próprio Sagan, como ele mesmo afirma em algumas passagens, e outras milhares de pessoas queiram acreditar na existência de vida extraterrestre inteligente, crer é diferente de  ter dados seguros. Segundo ele, há “casos confiáveis que não são exóticos e casos exóticos não confiáveis” pois tudo o que “sabemos” sobre contatos de alienígenas com humanos provém apenas de relatos, sem evidências concretas.

Os artigos no início do livro falam ainda das acusações feitas por ufólogos de que o exército estadunidense encobriria, há décadas, um suposto conhecimento sobre visitas de alienígenas à Terra. Sagan oferece algumas explicações para atividades consideradas suspeitas por teóricos da conspiração, entre elas:

  • Nos anos 50 e 60, os supostos OVNIS eram na verdade balões transportando equipamentos relativos à Guerra Fria. 

  • Os relatórios do exército enviados a outros órgãos nos anos 90 tinham grande parte das frases obscurecidas. Sagan afirma que essa era uma precaução com o intuito de proteger dados sigilosos ‒ como possíveis falhas na segurança federal. 

  • O fato da NASA sempre ser solicitada a justificar sua existência e prestar contas do uso de recursos seria uma ótima justificativa para a agência afirmar que há alienígenas na Terra. Portanto, ela provavelmente usaria esses dados caso fossem reais.


Durante todo o livro, Sagan advoga em prol de tornar o ensino da ciência contínuo não apenas nas escolas, mas em diferentes espaços sociais. Sua argumentação relaciona, por exemplo, as estatísticas dos programas de TV mais assistidos nos EUA na época (um deles é Beavis and Butt-Head, adorado pelo meu eu adolescente, mea culpa!) às atitudes de crendice popular. Isso ilustra quais tipos de conteúdo poderiam ceder lugar a projetos divertidos e atraentes, porém com base educativa. Essas percepções me lembraram de outro programa que eu adorava assistir nos anos 90, “O mundo de Beakman”. Era divertido e me ensinou coisas de que até hoje me lembro, como uma técnica mnemônica para saber a ordem dos planetas do Sistema Solar, comprovando assim a teoria de Sagan sobre a influência benéfica (ou contrária) do entretenimento em crianças.

O autor defende que desmistificar a ciência pode tornar pessoas de todas as faixas etárias mais conscientes, alertas e responsáveis e o mundo, um lugar melhor. Sim, até na minha cabeça tocou “Imagine” ao escrever a frase anterior. Mas creio que nenhum leitor minimamente bem-informado vai negar que atualmente vivemos um revival da Idade Média na relação conhecimento científico X povão e que, portanto, botar em prática as ideias de Sagan é uma medida urgente.

É claro que populações pensantes ameaçam o status quo e por isso governos denigrem os benefícios, desencorajam a implementação ou, no mínimo, ignoram as demandas de uma educação real e emancipadora. Segundo Sagan, portanto, faz sentido que grande parte da população mundial acredite nas falácias de que a pesquisa científica seja desperdício de recursos, ciência é algo complicado e cientistas são nerds antissociais, esquisitos e/ou perigosos. Para ilustrar o último ponto, ele discorre sobre a demonização dos cientistas após o Projeto Manhattan e contrasta a glamourização de figuras como Al Capone pela mídia com a relativa obscuridade de avanços científicos como os estudos de Maxwell das ondas eletromagnéticas (que anos depois viabilizariam a tecnologia da TV).

Outro ponto defendido por Sagan é o da pesquisa científica básica, ‒ o que ele denomina “ciência pela ciência” ‒  ou seja, o estudo da disciplina sem aplicações práticas definidas mas que geralmente leva a descobertas e avanços em variadas áreas, como o já citado exemplo da TV. Um adendo meu: de fato, olhando por esse prisma, não deveria ser tão questionado o alocamento de recursos para pesquisas espaciais enquanto gasta-se tanto na produção de armamentos e em toda a parafernália de guerra.

Caso tenha referências culturais parecidas com as minhas, você pode ter pensado que a visão estereotipada da ciência descrita no livro esteja datada e que fazia parte da “baixa cultura” (na animação “O inspetor Bugiganga” e no videoclipe de “Hole in my soul”, do Aerosmith, para citar apenas dois exemplos). Então, caso ainda não tenha visto o filme “Não olhe para cima”, te convido a assistir e observar, em meio à sátira, a atualidade da crítica que ele faz (desde o título, por sinal). O elenco estelar e em ótima forma é outra motivação para prestigiar. Basicamente tudo o que Sagan diz sobre tabloides e programas televisivos com conteúdo raso pode ser hoje aplicado às redes sociais, e o filme mostra bem o cenário atual.

Entre as sugestões de Sagan a educadores está a de que para explicar claramente nosso ponto, devemos nos lembrar de como pensávamos antes de saber o que sabemos hoje. Nas minhas anotações, escrevi que essa atitude é sempre útil para quem, como eu, é professora. Agora penso que é útil de modo geral, até quando vamos mostrar, por exemplo, o uso do celular para pessoas idosas ou treinar um novo funcionário na empresa. Disseminar conhecimento beneficia todas as pessoas físicas.

Me instiga entrar em contato com visões diferentes sobre um tópico cujo senso comum já tenha uma opinião consolidada, e “O mundo assombrado…” faz isso também. Acabamos de passar pelos Jogos Olímpicos de Verão em Paris e estamos no meio das Paralimpíadas, então é fácil ver e aplaudir a excelência dos atletas norte-americanos em diferentes modalidades esportivas. É fácil também, brasileira que sou, comparar a realidade de nossos atletas e enxergar o incentivo à prática esportiva desde a infância como algo que só tem vantagens. Sagan, no entanto, vê como negativa a ênfase nos esportes em detrimento do conhecimento científico. Achei válidos os argumentos do autor de que para formar cidadãos melhor informados e mais equilibrados, uma abordagem multidisciplinar seria a ideal. 

Antes dessa leitura, eu só tinha ouvido falar sobre o mecenato de artistas. Sagan menciona mecenas no patrocínio das ciências desde o surgimento destas até o período da Segunda Guerra. Isso me fez refletir sobre “uma utilidade para os ricos" (rs).  

Dentre as muitas informações novas que a leitura me trouxe, está o livro de Voltaire “Micrômegas ‒ uma história filosófica”, que entrou para a minha infinita lista de desejos.

Tenho apenas uma ressalva a respeito das opiniões em “O mundo assombrado…”. Quando explana o surgimento da ciência, Sagan faz isso de um ponto de vista eurocêntrico, sem jamais mencionar as ciências dos povos pré-colombianos, por exemplo. Feito esse aparte, dá vontade de copiar pelo menos um terço do livro e postar aqui, nas redes sociais, colar lambe-lambes nas ruas, enfim... Como isso não é possível, segue um trecho para sugerir que você leia esse livraço.


“A ciência, na minha opinião, é uma ferramenta absolutamente essencial para qualquer sociedade que tenha a esperança de sobreviver bem no próximo século com seus valores fundamentais intactos ‒ não apenas como é praticada pelos seus profissionais, mas a ciência compreendida e adotada por toda a comunidade humana. E se os cientistas não realizarem essa tarefa, quem o fará?” (página 381)


Recomendo para: interessados em ciência e pessoas que acham que tudo o que nos chega via redes sociais é confiável.

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