#58 As águas-vivas não sabem de si, de Aline Valek
Imersivo e profundo. Esses dois adjetivos podem soar como trocadilho infame ao qualificar uma história que se passa no fundo do mar. Mas atualmente estudo o incrível “A rainha dos cárceres da Grécia”, que trata da escrita de ficção fazendo dela uma deliciosa salada. Por isso, sinto-me empoderada o suficiente para utilizar os adjetivos acima e acreditar que você, leitor, vai mergulhar comigo e ler a resenha até o fim.
A protagonista de “As águas-vivas não sabem de si” é Corina da Costa (eu não sou a única a apreciar trocadilhos e alusões). Apesar de estar num momento de crise, ela é uma mergulhadora experiente e trabalha há anos em profundidades abissais. Atualmente, Corina integra a tripulação da Auris, um batiscafo de pesquisa cujo objetivo é testar a última tecnologia em trajes de mergulho. Aos poucos, conhecemos os outros quatro membros da equipe e seus segredos mais bem escondidos.
Esses ingredientes vão adicionar suspense e drama a uma história que não pode ser confinada a nenhuma das duas categorias. Creio que ela possa ser definida como ficção especulativa, mas também integra o gênero, recém-inventado por mim, “épico submarino”.
O romance tem um narrador onisciente que na maior parte do tempo nos mostra o ponto de vista de Corina. No entanto, há alguns capítulos que nos aproximam de cada um dos outros tripulantes de Auris. Criaturas marinhas ‒ reais e imaginárias ‒ e até mesmo o oceano narram, em primeira pessoa, capítulos alternados.
A narrativa é psicológica, portanto o interior das personagens está sempre em destaque. Mesmo assim, há bastante ação e os perigos de estar num ambiente que, como a própria Corina define, é hostil a humanos. Tudo é permeado por um suspense crescente em torno da ação da trama e da psique cada vez mais instável da tripulação. De nervosismo em nervosismo, a tripulação e o leitor fazem descobertas surpreendentes. Isso tudo só porque Aline Valek é uma escritora brilhante e porque não há história sem conflito. Contudo, o excepcional aqui é a construção da história e de sua atmosfera. O final é o ápice de uma composição belíssima.
(Cachalote. Foto de oceanactionhub.com)
Eu nunca tinha lido nada parecido com o que foi feito em “As águas-vivas não sabem de si”. A começar pela passagem do tempo e a transição entre presente, passado e passado remoto, que são sutis a ponto de se tornarem ambíguas. As descrições e o foco narrativo de cada cena, por sua vez, transformam a leitura numa experiência sensorial. Tudo torna-se tangível no mundo submarino da autora, da Auris e das criaturas marinhas que conhecemos, mescladas às já extintas e às imaginárias. Enquanto lemos, cores e vibrações borbulham dentro da gente e reforçam uma das ideias centrais do romance ‒ a da potência da vida em variadas formas.
“(...) pela primeira vez experimentava o sabor da água salgada ‒ o gosto de peixes se reproduzindo e crustáceos se decompondo e baleias amamentando ‒, e a memória da água concentrada naquele sal a fez engasgar com tanta informação (...)
Outro exemplo do caráter sinestésico da história é o de uma cena tensa no capítulo 12, “Narcose”, que transmite aquela sensação, vívida em acidentes, de que aquilo está acontecendo muito rápido e incrivelmente devagar ao mesmo tempo. A cena faz uma descrição perfeita do momento em que estamos conscientes mas também sem controle.
Sem cair no pedantismo, Aline retrata lindamente os primórdios da Terra (e da água, claro) e dá aula de biologia, arqueologia e outras ciências. Sem pieguice, ela nos mostra ainda algumas das complexidades nas relações humanas, nossas perdas e esperanças. Suas descrições são minuciosas, porém poéticas.
“Ela percebeu que a água se mexia como algo vivo, mas era pequena demais para encontrar uma categoria adequada para aquela coisa infinita e salgada, que não tinha pernas e se movia, que não tinha boca e sussurrava.”
Há também uma dimensão filosófica em “As águas-vivas…” que me despertou questionamentos sobre as forças regentes do mundo, as origens e os primórdios da vida no planeta Terra e a (atualmente esquecida) simbiose humana com a natureza.
Por falar em simbiose, a autora dá um banho de habilidade narrativa (esse é o último trocadilho, prometo) no capítulo denominado “Arraia”. Este é o apelido de um dos mergulhadores do romance, Gilberto. A dubiedade entre o personagem humano e o animal é primorosamente construída pela autora.
(Arraia-jamanta cor-de-rosa. Foto de nationalgeographicbrasil.com)
Sobre a autora
Eu já tinha ouvido falar de Aline Valek por aí e sabia de alguns dos prêmios que recebeu. Tenho outro livro dela ‒ “Cidades afundam em dias normais” ‒ na minha lista de futuras leituras (aquela num crescendo em progressão geométrica). Há alguns meses, por indicação do Substack, tornei-me assinante da newsletter da autora e, por lá, soube do podcast “Bobagens imperdíveis”, produzido pela própria Aline.
Quando conferi o episódio “De Dschinghis Khan a É o Tchan”, fiquei maravilhada. Depois desse, ouvi outros e posso dizer que a escritora, artista e podcaster tem uma obsessão da qual compartilho: pesquisar de maneira obsessiva. Ela transforma em narrativas interessantes e muitíssimo bem-construídas quantidades monumentais de informações sobre temas que a absorvem. Como consegue pegar tantos dados, juntar com um tanto de invenção e entregar o resultado sem um pingo de ranço enciclopédico, é algo que não consigo explicar, apenas admirar. Acho que é talento o nome disso que Aline tem. Foi a admiração por essa faceta da narradora que me fez tirar “As águas-vivas…” das leituras pendentes.
Percebeu que de bobagem o podcast só tem o nome, né? Super recomendo dar uma olhada nos títulos dos episódios e ouvir o que mais chamar a atenção. Para começar. Depois você provavelmente vai querer conhecer tudo o que Aline cria.
Existe um grupo de autoras contemporâneas que me fazem sentir orgulho de ser brasileira e afortunada por lê-las na minha língua materna e no tempo presente. Vanessa Bárbara, Giovana Madalosso, Lilia Guerra e agora, Aline Valek.
Aqui tem uma leiturinha extra sobre parte da ciência por trás do livro.
Para finalizar: Entre as pesquisas que fiz durante a leitura, encontrei este vídeo hipnotizante. Eu consigo imaginá-lo narrado por Aline. O roteiro da cena, na minha imaginação, incluiria outro trecho de “As águas-vivas…”:
“Música era tudo o que existia ao seu redor. Dois para cá, dois para lá, rodopiavam e agitavam seus minúsculos tentáculos, tudo unido por um só ritmo (...).”
Recomendo para interessados em histórias inusitadas e bem contadas. Em especial, para escritores e aspirantes.
Comentários
Postar um comentário