#59 O que acontece quando um homem cai do céu, de Lesley Nneka Arimah

(Editora Kapulana. Tradução de Carolina Kuhn Facchin. Capa: Mariana Fujisawa)


Quem acompanha o Vivo entre Livros já sabe que eu frequento bibliotecas. Lá, um dos meus baratos é encontrar um título totalmente desconhecido por mim, folheá-lo, ler uma ou duas frases da quarta capa e então levá-lo para casa. Assim, descubro aos poucos aquela(s) história. É uma experiência diferente de iniciar um livro recomendado por alguém. Se nunca se deixou surpreender assim, sugiro que experimente.


Dia desses, fiz um grande achado numa prateleira de biblioteca: a coletânea de 12 contos “O que acontece quando um homem cai do céu”, da nigeriana Lesley Nneka Arimah.


A escrita de Arimah, assim como o sorriso dela, é de arrasar. 

(Foto de writingafrica.com)


Os temas tratados pela autora incluem relações familiares (em especial de mãe e filha), paixões adolescentes, violência física e psicológica contra meninas e mulheres. O ponto forte da escrita é a forma cativante com que ela desenvolve as narrativas, as emoções que podem despertar e o soco na cara que a maioria delas dá.

Assim como aconteceu no primeiro (e, por enquanto, único) livro da Mariana Enríquez que li, faço questão de comentar cada uma das histórias de Arimah.

Há quem prefira não conhecer os enredos de contos antes de lê-los, por serem narrativas curtas. Caso você seja uma dessas pessoas, saiba apenas que neste livro é eita atrás de eita. Se quer saber um pouco do que povoa a coletânea, bora.


  1. "O futuro parece bom" fala sobre uma família, desde a infância do pai até a vida adulta de suas filhas. Uma delas, Ezinma, é a protagonista, mas só no final entendemos o porquê dela ser a figura central. Afinal, no decorrer da ação, Ezinma está apenas abrindo a porta de um apartamento e "não vê quem chega atrás dela" ‒ frase repetida diversas vezes ao longo da narração e que tem mais de um sentido. 

A famosa máxima de Cortázar, “O romance ganha por pontos e o conto por nocaute” me veio à mente quando li a primeira história de “O que acontece…”. Em poucas páginas, a autora conseguiu me intrigar, mencionar personagens de diferentes gerações, falar da Guerra do Biafra, de tensões familiares e de misoginia. E o final me arrepiou dos pés à cabeça. 

Depois disso, temi avançar e encontrar mais pauladas. Mas como parar uma leitura tão envolvente? 


  1. “Histórias de guerra” ‒‒ que fala do pai e do tio da protagonista e suas experiências em combate ‒‒  não me envolveu. Me pareceu haver ali uma alusão à neurose de guerra, mas para mim foi sutil demais. No entanto, não me identificar com essa história acabou sendo um descanso bem vindo após o impacto do conto anterior.


  1. “Descontrolada” mostra uma filha de imigrantes nigerianos vivendo nos EUA que é enviada para passar uma temporada com a tia na terra natal da família. Lá, a jovem testemunha a relação da prima com a tia e percebe que a dinâmica é bem diversa da que ela tem com a própria mãe. 

O jogo de diferenças e semelhanças entre as duas primas é delicioso de acompanhar. Além de questões familiares e relações de poder, a história fala de sororidade. O final singelo é lindo.

Em “Descontrolada”, percebi a versatilidade da autora, capaz de despertar múltiplos sentimentos durante a leitura. 


  1. “Luz” é o conto seguinte. Logo no início, está o trecho abaixo:


"Quando Enebeli Okwara soltou a filha no mundo, ele não sabia o que o mundo fazia com meninas. Ele não sabia quão rápido o orvalho dela evaporaria, como ela retornaria oca, sem as suas melhores partes." (p. 47)


Precisa dizer mais? 

Faço apenas dois apartes: 

“Luz” literalmente me arrepiou no início e marejou os olhos no final. 

A essa altura, eu já comparava, eufórica, a escrita de Arimah com a de Chimamanda, principalmente seu único livro de contos, “No seu pescoço”, também recomendadíssimo.


  1. Em "Segundas chances", Arimah repete o recurso, utilizado em “O futuro parece bom”, de recuar e avançar no tempo. O título refere-se à mãe da protagonista, que retorna ao convívio familiar após tê-la abandonado. No desenvolvimento, percebemos a mágoa que a moça sente pela mãe e pelos outros membros da família que a perdoaram.

Esse não está entre meus contos favoritos no livro, mas é tão bem escrito quanto os outros e prende a atenção.


  1. "Acidental", conta a história de uma filha cuja mãe vive de dar golpes. Conforme a menina cresce, a mulher aumenta a frequência e a intensidade com que a usa em seus esquemas para ganhar a vida. 

Na minha opinião, esse é o conto mais devastador da coletânea. Depois de lê-lo, passei alguns dias sem pegar o livro porque precisava me recuperar do baque. 


  1. "Quem vai te receber em casa" é perturbador. Trata da maternidade em um mundo onde mulheres confeccionam bebês utilizando materiais variados, que vão de porcelana para as ricas e lama ou até lixo para as pobres.

A protagonista sonha em ser mãe e já fabricou alguns bebês de materiais diversos. Por falta de grana, ainda não conseguiu um material forte o suficiente para que nenhuma de suas "crianças" vingasse. Quando ela consegue realizar esse feito, as consequências são sinistras.

Nesse conto, vemos uma faceta bizarra e, ao mesmo tempo, fascinante da escrita de Arimah.


  1. “As meninas da Buchi”, sobre uma viúva morando de favor com suas duas filhas na casa da irmã e do cunhado, é de partir o coração. A narrativa me arrancou lágrimas por sua sensibilidade com uma situação infelizmente tão comum.


  1. O conto que dá título ao livro, assim como "Quem vai te receber em casa", é uma ficção científica. 

Numa Terra pós-apocalíptica onde quase todos os continentes submergiram, com exceção da África e da Oceania, os matemáticos são profissionais influentes. Eles encontraram uma fórmula que permite aos seres humanos flutuarem e possibilita também que os profissionais removam, a partir de seus cálculos precisos, toda a tristeza e o sofrimento humanos. Essa é a profissão da protagonista, que pode curar as dores de todos, menos as próprias e as do pai e da namorada.

Tive certa dificuldade de entender o universo em que se passa a história. Lá pela metade, tive de voltar e reler o início. Mas depois o andamento foi bom e os sentimentos humanos sobressaíram diante do estranhamento inicial.


  1.  Glória: Um de meus contos preferidos da coletânea narra a vida de Gloriadeus, uma mulher que se considera azarada mas aos poucos, revela camadas mais profundas da própria psique. 

Leitores julgarão as atitudes da moça durante e depois do final aberto e maravilhoso.


  1. "O que é um vulcão" é uma espécie de fábula que explica a origem dos vulcões como um fenômeno causado pela briga entre o rei das formigas e a rainha das águas.

Foi interessante de acompanhar e mostra uma outra Arimah, desta vez falando de dramas não-humanos (pelo menos, não diretamente).


  1. O último conto, "Redenção" fala das agruras de uma menina de 13 anos, a impetuosa Mayowa. Ela é empregada doméstica na casa vizinha à da narradora, que tem a mesma idade de Mayowa e se apaixona por ela. 

Traz outro trechinho impactante que mulheres deste Braseel e do mundo entendem bem:


"Garotas com fogo no ventre são obrigadas a beber de um poço de punição até que as chamas se apaguem." (p. 167)


Gostei que a narrativa mostra diversas atitudes femininas questionáveis e critica o efeito manada que a cultura exerce sobre nós.


Gostei bastante do projeto gráfico desta edição de “O que acontece quando um homem cai do céu”, feito por Daniela Miwa Taira. Ele é bem diferentão: No início de cada capítulo aparece um detalhe da estampa de capa. 


Em seu mini ebook “12 dicas para escritores”, Carol Bensimon diz que o mais importante não é o quê contar, e sim como contar. Lesley Nneka Arimah faz jus a essa afirmação com seu domínio narrativo e sua inventividade. 

Fiquei empolgada e pesquisei sobre a obra da autora. Porém, ela  parece só ter textos publicados em antologias com outros escritores. Entre os poucos que encontrei, tem este outro texto dela (em inglês).


Recomendo para interessados em ficção especulativa, feminismo e Casos de Família.


(A apresentadora Cristina Rocha, imagem de tenor.com)

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