#48 Dicas (nem tão) rápidas: "As coisas que perdemos no fogo" e "Quando acreditávamos em sereias"

(Imagem: Freepik.com)


Os dois livros que vim indicar hoje são de gêneros diferentes mas têm em comum:

1. títulos relativamente longos

2.  o fato de terem permanecido na minha cabeça por semanas


(Capa: La Boca e ô de casa, Tradução: José Geraldo Couto)


Quem está antenado com a literatura contemporânea sabe que a argentina Mariana Enríquez tem dado o que falar. Eu comecei a lê-la por “As coisas que perdemos no fogo” e finalmente entendi o porquê da comoção em torno da autora. 

Até então eu não havia lido nada parecido. Mariana escreve num estilo que eu classifico de “terror urbano e social”. Os 15 contos da edição estão repletos de personagens marginalizados e situações de injustiça e violência corriqueiras na atualidade. Todos eles se passam na Argentina mas, como toda boa história, têm ressonância universal.

Meus favoritos:

“A hospedaria” relata a experiência “sobrenatural” vivida pela adolescente Florencia em companhia da amiga Rocío numa hospedaria abandonada. Essa narrativa aborda de forma delicada algumas explorações sexuais das duas jovens e de Lali, a irmã mais velha de Florencia. Também aborda consequências de se ter uma vida sexual quando se é uma mulher jovem numa sociedade em que o tema é tabu. 


“A casa de Adela” tem o mote clássico da casa assombrada. O que mais me agradou aqui foram o suspense e o final aberto. Mesmo sendo predominantemente um terror tradicional, o conto perpassa temas de cunho social, neste caso, envelhecimento e memória.


Pablito clavó un clavito: uma evocação do baixinho orelhudo” narra um passeio turístico pelos pontos em que Cayetano Santos Godino e outros famosos assassinos em série ou suas vítimas viveram. 

Pablo, o guia, é o personagem que acompanhamos durante e após a excursão. Além da referência macabra a crimes reais, o conto traz uma bem construída e fascinante insinuação de algo sinistro na vida do protagonista.


“Teia de aranha”. Aqui o “terror urbano e social” da autora fica bem explícito em forma de violência doméstica e gaslighting. A melhor personagem do livro, Natalia, faz desta uma história de empoderamento feminino.

Outro conto de temática bem contemporânea é “Nada de carne sobre nós”, em que a protagonista sem nome acaba cedendo esse papel a uma caveira encontrada na rua a quem dá o nome de Vera.

É o tipo de enredo cujo impacto aumenta se entrarmos nele sem saber do que trata.


“Sob a água negra” traz todos os elementos que destaquei no início deste texto: marginalização, violência e injustiça social para compor o clima de tensão e terror quando uma promotora pública decide visitar um bairro periférico em busca de pistas sobre o caso que investiga: a denúncia do assassinato de Emanuel López e Yamil Corvalán, ambos de 15 anos, por policiais. 

A raiva e a tensão causadas por essa trama são quase palpáveis.


“Verde vermelho alaranjado” foi, para mim, esquisito e instigante na mesma medida. Esse conto me lembrou um romance ótimo, porém assustador, que li anos atrás, chamado “Homens, mulheres e filhos”.  Ambos falam do contraste entre relacionamentos familiares e interações via redes sociais e da compulsão por estas. 

No caso do conto, por ser curto, temos acesso apenas às atitudes das personagens, sem nos aprofundarmos tanto nas consequências. Mesmo assim, foi interessante acompanhar.


O conto título, “As coisas que perdemos no fogo”, encerra magistralmente a coletânea. Ele foi o que mais me impactou pois mostra, a princípio, mulheres que sobreviveram após serem queimadas por seus companheiros, algo por si só horrível. Mas há um segundo momento, quando outras mulheres passam a atear fogo em si próprias. 

Por que elas fazem isso é um ponto de reflexão que me atormentou durante e após a leitura. Acho que é uma ótima história para ser lida e discutida em grupo.


Recomendo “As coisas que perdemos no fogo” para fãs de terror e amantes de contos em geral.


(Capa: Ana Dobón, Tradução: Gabriela Peres Gomes)


Em um hospital da Califórnia, a notícia na TV da explosão de uma boate em Auckland chama a atenção da doutora Kit Bianci. Para sua surpresa, ao mostrar a cena do acidente, a câmera filma uma passante muito parecida com sua irmã Josie, morta há 15 anos num ataque terrorista. A mãe de Kit pede então que ela investigue a possibilidade de que a filha mais velha esteja viva. Em capítulos alternados, acompanhamos também o ponto de vista de uma mulher chamada Mari. Esposa e mãe exemplar, ela esconde, porém, seu passado de todos que a cercam. 

O romance é composto pelos acontecimentos vividos pelas duas protagonistas e por suas lembranças. A partir destas, aos poucos entramos em contato com um passado ainda mais complexo do que a superfície indica.

Gostei da verossimilhança das personagens e de como mesmo as secundárias são muito bem construídas, com personalidades distintas mas não caricatas.  Também me agradou a narrativa de Barbara O’Neal. Quase tudo no enredo é crível: a aparência das personagens, seus traumas, suas mentiras e atitudes. Minha única crítica é ao final, que considero apressado, forçado e piegas de uma maneira que não combina com o desenvolvimento dos dois primeiros terços do livro. 

Mesmo assim, a narrativa prendeu a minha atenção e fez refletir a respeito de relações familiares, como cada pessoa lida com frustrações e traumas e até sobre a famigerada mania feminina de tentar “salvar” ou “consertar” homens.

Essa leitura me trouxe ecos de outras histórias de irmãs amigas e / ou rivais na literatura, em especial “Razão e sensibilidade” e a "Tetralogia napolitana", apesar de, por conta da derrapada final, ser inferior às outras duas obras.


 Recomendo “Quando acreditávamos em sereias” para apreciadores de drama familiar.

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