#47 Voragem, de Junichiro Tanizaki

 

(Capa: Raul Loureiro, Tradução: Leiko Gotoda)


O romance é composto pelo relato verbal de Sonoko Kakiuchi dirigido a alguém que ela chama de sensei. Esse ouvinte, aliás, interfere em alguns momentos, dando assim a entender que escreveu o livro com base na história contada pela senhora Kakiuchi. Em sua narrativa, a protagonista conta de sua paixão pela jovem Mitsuko Tokumitsu e o desenvolvimento de sua relação.

Classificar de tóxico o relacionamento das duas mulheres é usar um eufemismo. Creio que destrutivo seja a palavra mais adequada. Para começar, Sonoko é casada com Eijiro e mente para ele na maior parte do tempo em que se relaciona com Mitsuko. Para complicar ainda mais a situação, na segunda metade do livro, entra em cena outro homem, Watanuki. Prefiro não detalhar em quais circunstâncias, para não entregar muito do enredo.

No início do caso, a beleza encantadora de Mitsuko leva Sonoko a decidir pintá-la à imagem de Kannon. Conforme a relação entre as duas mulheres se estabelece a aprofunda, porém, a ação, as intrigas, dissimulações e paranoias de todos os personagens aceleram gradualmente até atingirem um ritmo vertiginoso.

Daí a precisão do título elegante em português, que combina perfeitamente a delicadeza do estilo do autor ao turbilhão do(s) caso(s) amoroso(s) da trama. 

Ainda a propósito do título, ao bisbilhotar edições estrangeiras na Internet, fiquei intrigada ao perceber uma coincidência em várias das capas dos livros e nas fotos das adaptações cinematográficas. Abaixo, uma da primeira edição japonesa e a do filme de 2006 de Noboru Iguchi.


       

               Foto: amazon.co.jp         Foto: asianwiki.com


Ao pesquisar mais, descobri que esse símbolo que se repete é o kanji para a palavra manji. Além de ser o título original do livro de Tanizaki, o caractere tem um significado sagrado em países orientais e, no anos 20  e 30 foi usado no Ocidente com uma carga comercial antes de ser aplicado à você-sabe-qual ideologia e passar a ser mal visto por grande parte da humanidade. 

Uma das ideias que manji representa é a de equilíbrio entre opostos e harmonia universal. A primeira ideia que me vem à mente após ler o furdunço do livro é que o autor escolheu um título irônico. Mas essa me parece uma visão simplista, pois a história tem várias camadas, então pode ser que ele se refira à constante busca da protagonista por conciliar seu amor proibido e os outros aspectos de sua vida. Ou pode ser que eu tenha mesmo perdido algo na tradução. Se você leu / ler o livro, me conta qual a sua interpretação. 

Em inglês, o título do romance é “Quicksand” (areia movediça), que contempla o caráter caótico das relações desenvolvidas no romance, mas, a meu ver, não tem as nuances do título original e da tradução para o português.

Voltemos ao enredo. Embora eu não seja entusiasta de saber da vida alheia (na vida real, porque na ficção é outra história), preciso reconhecer que em “Voragem” Tanizaki mostra todo o sabor que uma intriga pode proporcionar. Se eu precisasse definir esse livro em poucas palavras, escolheria “eita atrás de eita”. A maestria narrativa do autor e os capítulos curtos e quase sempre com cliffhanger fizeram dessa uma leitura que eu não tive vontade de largar enquanto não terminei. 

Ademais, é admirável ver como o autor conseguiu urdir uma trama repleta de angústia, ciúme, manipulação e desatino e atenuar essas características com sutileza narrativa, tornando a história simultaneamente forte e delicada. Algo parecido com o cruzamento entre a poesia de Castro Alves e o roteiro de qualquer novela da Televisa.

Para leigos no assunto como eu, alguns detalhes da cultura nipônica mostrados no livro podem ser interessantes. Um deles é a menção ao artista Yumeji Takehisa. Algumas de suas gravuras, produzidas no início do século XX (época em que se passa “Voragem”), aparecem nos envelopes de cartas trocadas por Sonoko e Mitsuko. Outro ponto de interesse é uma cena em que pessoas supostamente são presas ao apostarem no bakuchi, jogo popular entre membros da Yakuza.

Fiquei surpresa com a abordagem do autor sobre temas que, imagino, eram tabu na sociedade nipônica em 1931 da mesma forma (ou talvez mais) que em grande parte do mundo. Se discutir publicamente desejo, bissexualidade e poliamor hoje em dia dá pano pra manga, imagine naquela época. A (também revolucionária para o período) questão da neutralidade de gênero aparece em trechos como este:


(...) Se ele não merecia ser chamado homem, em que consistia verdadeiramente o valor do homem? Um homem era assim definido apenas em função da sua aparência externa? Se assim fosse, ele não fazia nenhuma questão de ser homem: (...) Cristo e Shakyamuni, dois dos homens que mais se destacaram no mundo como líderes espirituais, não tinham sido ambos pessoas muito próximas à neutralidade sexual? (...) E por falar nisso, as esculturas gregas, por exemplo, representavam um tipo de beleza neutra, nem masculina nem feminina. As imagens santas Kannon e Seishi-bosatsu também tinham essa aparência, donde se concluía que os seres mais nobres da humanidade possuíam perfis assexuados. (Páginas 153-154)


Acho que o parágrafo acima dá uma ideia da ousadia com a qual Tanizaki lida com o tema em “Voragem”. E se tudo isso já não tornasse um livro riquíssimo, discussões a respeito da beleza e de como ela está associada à vida em geral e ao desejo também permeiam conversas e reflexões das personagens do romance. 

Agora quanto à minha experiência de leitura. Enquanto a trama fica cada vez mais enrolada e dramática, a narrativa torna-se igualmente complexa, e isso me levava a reler frases e até parágrafos para conseguir entender as palavras e atitudes dos personagens. Fazer isso, no entanto, não diminuiu o ritmo frenético da leitura. A tensão crescente me deixava mais e mais irritada com a dissimulação de Mitsuko e a ingenuidade de Sonoko e esses motivos somavam-se para eu querer saber o final. 

O final foi inesperado para mim. Embora no início do relato já se saiba de um fato importante para a conclusão, eu não imaginei que a forma pela qual se chegaria lá fosse a que de fato aconteceu. Ou seja, Tanizaki tem dotes de autor de suspense também. Só palmas para ele.


Recomendo para fofoqueiros de plantão, apreciadores de histórias com protagonismo LGBTQIA + e adeptos de narrativas não convencionais.

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