#50 A época da inocência, de Edith Wharton

 

(Capa:A2 / Mika Matsuzake)

Tradução: Jonas Tenfen e Juliana Steil)

Em “A época da inocência”, acompanhamos a vida de um grupo de nova-iorquinos abastados durante a Era Dourada da cidade (entre o final do século XIX e o início do XX). 

Um narrador onisciente nos mostra de perto o ponto de vista de Newland Archer. No início do livro, o jovem advogado está noivo de May Welland e ansioso para marcar a data do casamento. May é linda e, como Newland, vem de família rica, portanto a união é ideal para ambos os lados. Ele gosta de literatura e arte, o que torna sua mentalidade menos tacanha do que a da maioria das pessoas de seu convívio. Por isso, apesar de apaixonado, Newland sente-se entediado ao ouvir as opiniões convencionais da noiva, educada para ser boa esposa e mãe e “fazer bonito” em eventos sociais. 

Após anos na Europa, a chegada à cidade da recém-separada Ellen Olenska, além de um escândalo, torna-se uma janela por onde Newland vê a personificação do conhecimento de mundo que ele próprio deseja ter. O contraste entre Ellen e May é gritante e então ele acaba questionando se a futura esposa é de fato a melhor opção para ele.


Estava na ponta da língua dele responder “Não seja vista passeando pelas ruas com Beaufort…”, mas estava absorvido demais na atmosfera da sala, que era a atmosfera dela, e dar um conselho desse tipo seria como dizer a alguém que estava pedindo essência de rosas em Samarcanda que se deveria sempre estar munido de galochas para o inverno de Nova York. Nova York parecia muito mais distante que Samarcanda e, se eles fossem de fato se ajudar, ela lhe devolveria o que poderia representar o primeiro de seus serviços mútuos ao fazê-lo olhar para sua cidade natal de maneira objetiva. Vista assim, através do lado errado de um telescópio, parecia desconcertantemente pequena e distante; e assim pareceria Samarcanda. (página 79)


A superficialidade, a ignorância e a arrogância dos que rodeiam o triângulo amoroso transparece no preconceito, por exemplo, contra os Struthers, cuja fortuna adquirida no comércio de graxa para sapatos é menosprezada. A hipocrisia dos homens que traem as esposas “discretamente” e  julgam quem é abertamente infiel é outra amostra da maneira de pensar da maioria dos personagens, cujas “grandes preocupações” são títulos de nobreza e status, na forma de louças e outras frescuras.

Uma das exceções a esse comportamento é a senhora Catherine Mingott. Avó de Ellen Olenska, a idosa é a única parente que não só aprova a decisão da neta de se separar do marido como oferece apoio financeiro. Além disso, com o super poder, conferido pela idade, de falar o que lhe der na telha, as aparições de vovó Mingott sempre são um respiro da artificialidade da vida no grupo. 

Outra exceção é, obviamente, Ellen. A co-protagonista comporta-se de maneira totalmente diversa ao que se esperaria de uma mulher “bem-nascida” da época. Sua separação é motivo suficiente para ela gerar falatório na “alta sociedade” nova-iorquina e o plano dos locais é dar um gelo na recém-chegada. Entretanto, quando o casal van der Luyden convida Ellen para um jantar, os outros veem-se forçados, pelo bem das aparências, a incluí-la também. Eles passam, então, a culpar seus “costumes europeus” pela conduta de ignorar praticamente todos os provincianos protocolos locais (xenofobia mandou um oi). 

Ellen socializa com artistas, circula por aí com homens casados e horror dos horrores! mora sozinha por opção. Ela tem vasta cultura e sempre expressa opiniões honestas e interessantes. Seu caráter também se mostra diferente da regra quando ela oferece apoio a Regina Beaufort, que passa por dificuldades financeiras e cai no ostracismo. Toda a cultura, criatividade, integridade e humildade de Ellen fazem com que, aos poucos, Newland e nós, leitores, nos apaixonemos por ela.  

May, apesar de vista por Newland como um adorno bonito na maior parte da história, mostra-se inteligente e aguerrida de uma maneira que engana o noivo, bem como o leitor até certo ponto da leitura. Depois, porém, fica claro que a moça usa esperteza e sutileza num contexto em que essas eram, na maioria dos casos, os únicos recursos disponíveis às mulheres para driblar impunemente o machismo e a rigidez das tradições. 

Um dos pontos que amei no livro foi a galeria de  pintores, designers, costureiros, compositores, músicos, cantores, atores, bailarinas, autores (referidos pelos personagens esnobes como “pessoas que escreviam”) e dramaturgos que desfilam pelas páginas. Eu desconhecia grande parte deles e adorei pesquisar as referências e descobrir um pouco sobre os anjos de Bougereau, Christine Nilsson, Marie Taglioni, Eugène Labiche e o retratista Sir Joshua Reynolds (que, aliás, pintou uma obra chamada “The age of innocence”). Como são inúmeros os artistas mencionados, desisti de anotar todos mas, ao pesquisar os que mais me chamaram a atenção, tive uma experiência sensorial muito enriquecedora. Isso me pareceu também modernizar o livro de certa forma, pois torna o contexto cultural da época tridimensional. Acho que Edith Wharton adoraria o Instagram 🙂 (Mas não o TikTok, que não tem sutileza hehe).

Sutileza, por sinal, é uma característica marcante na narrativa. A cada capítulo, o enredo se desenvolve de maneira gradual mas perceptível. Não há grandes reviravoltas, mas um ritmo bem marcado e um avanço constante nos acontecimentos. Achei o andamento delicioso de acompanhar. Ele torna a história perfeita para ser lida um capítulo por dia. Ler assim me trouxe a sensação de que o livro é irretocável, e contém todo o essencial para mostrar ao leitor os acontecimentos e a crítica social da autora.

A edição tem notas de rodapé (sem crédito, mas provavelmente feitas pelos tradutores), que ajudam a entender quem são os artistas mencionados mesmo que você não queira pesquisar mais profundamente. Há alguns erros de revisão, principalmente ortográficos, mas isso não consegue ofuscar a brilhante escrita de Edith Wharton. O estilo da autora é elegante, porém não rebuscado a ponto de afetar a compreensão.

Estou feliz de ter começado o novo semestre com esse romance e que ele seja tema do quinquagésimo post do Vivo entre Livros. E ainda vai, sem dúvida, entrar para a lista de melhores do ano.


Recomendo para quem está a fim de uma leitura profunda, para viajar no tempo e desconectar dos arredores durante a leitura. E para amantes de arte, história e cultura em geral. 


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