#20 Meu corpo ainda quente, de Sheyla Smanioto

 


 

(Nós)


Segundo romance da paulistana Sheyla Smanioto, “Meu corpo ainda quente” traz personagens femininas e suas experiências em corpos que “nunca têm só pra elas”, como define uma personagem. O nome da protagonista do romance, João, lhe foi dado como tentativa de mitigar as violências cotidianas contra mulheres no local onde moram. Lugar fictício de desova de corpos durante a ditadura militar brasileira e inspirado no município paulista de Diadema, onde cresceu Smanioto, “Vermelho” é o cenário da história. Nesse ambiente, Jô ‒‒ apelido de João ‒‒ vive seus relacionamentos familiares, de amizade e afetivos. Porém, a relação mais importante mostrada na obra é a de mulheres com seus corpos e com o sexismo sofrido por elas.

Ao longo de toda a narrativa, as interações da protagonista com outras personagens mostram a visão de mulheres acostumadas a não ter voz e doutrinadas a afastarem-se das sensações do próprio corpo, palavra sempre grafada com C maiúsculo, para personificá-la.

Eu ainda não sabia que uma mulher 

pra desaparecer com seu próprio Corpo  

precisa estar viva.

Desaparecer um Corpo dá trabalho, eu ainda não sabia. 

 

Além da violência psicológica, a física também faz parte da realidade das mulheres de Vermelha. Em determinado momento do romance, Jô precisa entrar no rio da cidade para resgatar um corpo ‒‒ esse, sim, assassinado de fato, e não “apenas” metaforicamente.

A forma em que o livro foi escrito lembra a estrutura de versos livres. Isso dá a ele um caráter poético que lembra "O peso do pássaro morto", de Aline Bei. A escrita de Sheyla Smanioto tem, além disso, ecos de Virginia Woolf e de Ariana Harwicz. O fluxo de consciência, apesar da característica ambiguidade, ajuda a identificação de leitoras com vivências de abuso. Ao escrever, a autora dizficar imaginando como vai ficar o corpo do leitor, se ele também vai sentir isso que estou sentindo, se vai sorrir e chorar e se indignar comigo”. Em “Meu corpo ainda quente”, é provável que leitoras sintam tudo isso e mais.

Assim como o rio em que são desovados cadáveres em Vermelha, essa narrativa lenta e sinuosa é profunda e pede para ser adentrada com cautela, para não nos afogarmos em sua correnteza de imagens e sentimentos. Sua leitura exige fôlego, mas é um deleite para amantes de prosa poética e reflexiva.


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