#28 É sempre a hora da nossa morte amém, de Mariana Salomão Carrara
(Capa: Cristina Canale e Romulo Fialdini)
Após ser encontrada vagando por uma estrada, chamando por Camila e segurando uma coleira vazia, Aurora foi levada a um lar para idosos. Ela não se lembra onde mora, quem é Camila e sequer tem certeza de seu próprio nome.
As lembranças de Aurora, apesar de repletas de detalhes e aparentemente coerentes, são contraditórias. Em algumas delas, Camila é sua melhor amiga. Em outras, sua filha. Em alguns momentos, ela diz não ser mãe. Ao anotar os pontos repetidos nos diferentes relatos, como sua aversão por sequilhos, o fato de que na juventude dirigia um fusca e sua predileção pela idade de 40 anos, a assistente social Rosa procura montar o quebra-cabeça da vida da idosa e descobrir quem ela de fato é.
Pelo convívio com minha avó portadora da doença de Alzheimer, eu tinha receio de que essa leitura seria dolorosa, mas Mariana Salomão Carrara me surpreendeu com seu humor irônico ao criar uma protagonista que, mesmo não se lembrando de fatos cotidianos, não perdeu a sagacidade, o senso crítico e sua acidez.
O enredo não se torna confuso em nenhum momento, pois a autora amarra muito bem os assuntos de cada capítulo e, assim, organiza a narrativa da mesma forma que Aurora faz com suas reminiscências: dando ao leitor a certeza da veracidade de tudo, mesmo que na passagem seguinte muitos pormenores mudem. Penso que essa é uma maneira bonita de validar as recordações de pessoas com algum tipo de demência.
A protagonista é professora aposentada de língua portuguesa, o que permite a Mariana fazer jogos de palavras de que gostei muito, apaixonada por idiomas que sou.
Entre os temas presentes na história estão maternidade, amizade, casamento, crescimento e maturidade e, como indica o título, morte. A autora traz ainda uma referência velada a um programa de TV dos anos 90 (que apenas quem assistia vai pescar) e menciona a ditadura militar brasileira.
O processo de rememoração, esquecimento e retomada a cada novo relato me fez pensar que o livro teria um final em aberto, por isso fiquei surpresa que haja um desfecho. O que aconteceu nele também me pegou desprevenida. Foi uma conclusão melancólica porém não indigesta. O livro como um todo foi uma leitura envolvente e prazerosa.
A minha principal reflexão ao ler “É sempre a hora da nossa morte amém” foi sobre a relatividade da importância de certas coisas na vida e a relevância que elas mantêm ou adquirem com o passar do tempo, enquanto outras “desbotam”.
O livro está disponível para empréstimo na BibliON.
Recomendo para interessados em temas de saúde mental, quem gosta de livros leves sobre temas pesados e quem ainda não conhece a excelente escrita de Mariana Salomão Carrara.
P. S. Aproveito a oportunidade para mencionar que há alguns meses li outro ótimo romance com a temática da perda de memória, “Please, look after mom” (“Por favor, cuide da mamãe”), da sul-coreana Kyung-Sook Shin. Esse, em grande parte, é narrado da perspectiva dos parentes da personagem central, e trabalha o tema de modo mais sentimental e comovente.
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