#37 Minha história, de Michelle Obama

 

(Capa: Christopher Brand. Tradução de Débora Landsberg, Denise Bottmann e Renato Marques)


“Cresci com um pai incapacitado numa casinha pequena, sem muitos recursos, num bairro que ensaiava a decadência, e também cresci rodeada de amor e de música numa cidade múltipla, num país onde a instrução pode nos levar longe. Eu não tinha nada, ou tinha tudo ‒ depende de como você queira contar essa história”. (pg. 428)


O trecho acima resume bem as memórias de Michelle Obama. O que mais me cativou nesse livro foi a simplicidade. Sem exagerar no apelo dramático, Michelle narra o seu crescimento sendo caçula de dois filhos de uma família pobre de Chicago. Ela  conta como a estabilidade e a união familiares a ajudaram a estudar, tornar-se advogada em uma grande firma e, mais tarde, envolver-se em causas de apoio ao bem-estar social. Entre essas atividades, teve também a parte famosa de sua trajetória: tornar-se a esposa daquele que viria a ser o primeiro presidente negro dos EUA.

Ler a história de Michelle me lembrou o filme (ótimo, por sinal) “Ficção americana”. Nele, o diretor e roteirista Cord Jefferson critica o fascínio do mercado e, claro, dos consumidores de arte por obras de autoria negra que fazem retratos estereotipados da negritude.

Acredito que não haja nada de intrinsecamente errado em consumir e apreciar relatos de dramas pessoais como os vividos por Maya Angelou e Viola Davis, por exemplo (as memórias da atriz me agradaram até certo ponto, justamente pela carga dramática das experiências dela). Afinal, biografias, na literatura e no cinema, existem para mostrar como as pessoas processaram o que lhes aconteceu. Mas entre os três livros, o que mais me agradou foi o de Michelle, pela “normalidade” da vida dela. Do meu ponto de vista, o caráter cotidiano de “Minha história” (embora de maneira diferente do filme de Jefferson) pode levantar um questionamento sobre a veia sádica que faz com que apreciemos observar o sofrimento alheio.

Michelle menciona situações de racismo vividas por ela e pessoas do seu convívio, mas não se estende ao falar sobre a dor causada pelo preconceito. Me parece que ela faz no relato o mesmo que na vida: reconhece um problema que a afeta, lida com ele fazendo o seu melhor e segue vivendo. Uma amostra das atitudes dela, enquanto primeira-dama, frente a questões de desigualdade de oportunidades são as iniciativas educacionais voltadas principalmente (mas não só) para meninas. 

Ela fala muito sobre pertencimento e discorre longamente sobre as desigualdades de gênero mostrando, ao meu ver, uma visão ampla de igualdade. O tributo prestado por ela às amigas que ajudaram na sua formação e no seu trabalho, tanto no campo profissional quanto no cuidado com as filhas, é lindo. Ele inclui testemunhos sobre a mudança de perspectiva causada pelo falecimento de uma grande amiga e a exaltação da criatividade da própria mãe para cuidar da família e da casa com poucos recursos financeiros enquanto Michelle e o irmão eram crianças.

Outro ponto que me fez ver na ex-primeira-dama alguém “gente como a gente” foi o relato de sua constante busca pela perfeição na escola, na universidade e mais tarde na vida profissional, no casamento e na maternidade. As inseguranças e dúvidas dela me fizeram pensar “que mulher nunca?” Parece que Michelle, como tantas de nós, se cobra demais. 

A autora também não romantiza as relações familiares (embora a descrição do início do relacionamento dela com Barack Obama seja digna das melhores comédias românticas <3). Inclusive, ela narra os percalços de ser casada com um político, e declara que era contra o ingresso do marido nesse campo. Ela fala do trabalho que dá adquirir a sabedoria para manter saudável um casamento Em nenhum momento, porém, a história se torna mimimi e isso é inspirador.

Ainda no que se refere à política partidária, Michelle cita a então maioria branca no Congresso norte-americano e expõe a misoginia nas campanhas eleitorais. Segundo ela, nesse universo (e nos outros universos conhecidos, eu diria) mulheres são retratadas como megeras . Outro ponto destacado é o do escrutínio feito à sua aparência enquanto primeira-dama e a de outras mulheres em posições de poder. 

No todo, como primeira-dama, a sra. Obama me pareceu prática ao criar e conduzir campanhas relativas à educação e nutrição infantis, tópicos caros a ela. Ao mesmo tempo, ela demonstrou atenção à questões de segurança. Prova disso é que no livro ela não apenas enumera algumas vítimas de violência racial do período em que esteve na Casa Branca, mas as cita nominalmente.

Entretanto, ela não se coloca num pedestal de salvadora da pátria. Ao falar de suas palestras em escolas no período em que foi primeira-dama, conta que certa vez, ao visitar um bairro pobre e dominado pelo crime organizado, conheceu um menino que virou para ela e soltou: “é legal você estar aqui, mas o que pode fazer, na prática, por nós?” Achei ótima a resposta honesta e simples dela. Resumindo com minhas palavras, ela retorquiu que, de fato, não podia fazer muita coisa e que estava ali principalmente para incentivar que ele e outras crianças continuassem a estudar para que pudessem, mais adiante, mudar a própria realidade.

Como ser humano, ela demonstra humildade em diversas passagens. Uma delas é quando afirma que aquilo de que mais sentiu falta ao deixar a opulenta residência presidencial foi o carinho dos funcionários com ela e sua família.

Além de interessante, o livro é bem escrito. As metáforas e comparações utilizadas em cada capítulo também os encerram, "fechando um ciclo" e a narrativa tem um quê de literária. Esses pontos tornaram a leitura marcante e muito prazerosa. 

Um parêntese sobre essa edição. Apesar do número incomum de tradutores, o texto é fluido do início ao fim. Por isso quero destacar a revisão feita por Jane Pessoa e Angela das Neves.

Um detalhe que me chamou a atenção foi que o título original, Becoming” (“Tornar-se” ou “Tornando-se”), apesar de não ter tanto apelo em português, é perfeito para o livro, já que a tônica dele são os aprendizados de Michelle ao longo da vida e o fato de que eles não cessam. Achei a cara da canção de Gonzaguinha.


Recomendo para interessados em relatos biográficos e em atualidades.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

#35 Contos indígenas brasileiros, de Daniel Munduruku

#21 A última casa da Rua Needless, de Catriona Ward

#1 Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway