#8 Gay de família, de Felipe Fagundes


(Paralela)

O protagonista, Diego, há tempos tem péssimas relações com sua família religiosa e homofóbica. Num final de semana, seu irmão Diogo implora que ele tome conta dos três sobrinhos para ele e a esposa, Keila, viajarem para um retiro de casais. Diego, que, tamanho o seu afastamento da família, nem sabia quantos sobrinhos tinha ao todo, acaba cedendo ‒ não sem interesse, mas leia o livro para saber o que finalmente o convenceu! ‒ e o desenvolvimento da relação que ele vai estabelecer com as crianças a partir daí é algo muito gostoso de acompanhar.
Uma das coisas mais interessantes que um autor de ficção pode fazer, na minha opinião, é criar protagonistas humanos, ou seja, complexos, cheios de defeitos e qualidades em proporções desiguais, pessoas que erram, acertam, erram, erram, erram e estatisticamente em algum dia desses devem acertar de novo, sabe? Diego é assim e mesmo com sua tendência ao drama, é alguém cativante por ser tão autêntico.
Ester, Miguel e Gabriel são crianças muito engraçadas e, cada uma à sua maneira, adoráveis! Ao descrever os episódios que envolvem os três, Felipe mostra seu brilhantismo e aponta como as merdas dos adultos impactam seus netos, filhos ou sobrinhos. Porém, isso é feito de maneira despretensiosa, sem pagar de salvador da pátria (Diego até tenta, mas Nádia, sua melhor amiga, logo o derruba do pedestal, e isso também foi lindo de ler porque, como ela mesma diz, ninguém sabe ao certo o que está fazendo, nós adultos apenas fingimos que sabemos e seguimos em tentativas e erros). Aliás, até o crescimento de Diego é mostrado de forma sutil e bem-humorada, como se nada fosse, mas está lá uma reflexão importantíssima dele perto do final da narrativa. As cenas cômicas entre o tio e os sobrinhos mostram alguns aspectos comuns a crianças, como ingenuidade e curiosidade, e isso contribui mais uma vez para o realismo das situações narradas.
Pense em um livro que você lê sem nem perceber que as páginas e o tempo estão passando. Agora pense em um livro com MUITO humor escrachado e hilário (desde que você não tenha algo contra piadas de sexo, claro). Então pense em um história bem construída, bem escrita e em personagens cativantes. E se o enredo fosse recheado com referências pop do cinema, da TV e da música? Mas e o engajamento político e temas relevantes na atualidade, como a já citada representatividade LGBTQIA+ e a não branca, gordofobia e controvérsias na “tradicional família brasileira”? Então alguém poderia dizer “Ain, esses temas às vezes pesam o clima, gosto de histórias fofas, que dão um quentinho no coração”. Até ler “Gay de família”, eu acharia impossível colocar tudo isso em um único livro de ficção sem parecer uma mistureba incoerente. Agora sei que é possível e fiquei tão feliz! Durante a leitura, então… As gargalhadas foram muitas! E a “entrevista” com o autor no final? Tão divertida que li duas vezes! 
Mas o maior mérito do autor, ao meu ver, é que, como o próprio diz na tal “entrevista”, ele escreveu uma história para entreter e, mesmo contendo tantos assuntos sérios, em nenhum momento a narrativa perde o ritmo ou se torna cansativa, então eles são bônus muito bem-vindos, mas nem de longe uma pregação pró ou contra o que quer seja, ao contrário de alguns romances contemporâneos que parecem querer abordar todos os temas sérios mencionados no parágrafo anterior e assim se tornarem manuais de "como ser uma pessoa bacana". Felipe narra tudo de um jeito muito leve, assim como as nossas vidas poderiam ser levadas, talvez? Tipo cada um cuidando da sua intimidade, fazendo aquilo que quer e de que gosta sem prejudicar ninguém e só cultivando contatos com outros seres para colaborações e crescimento mútuos, sabe? Que lindo seria se acontecesse com mais frequência também fora da ficção!
“Gay de família”, por sinal, tem um final lindo, uma mensagem linda, a cereja no bolo maravilhoso e delicioso que foi toda a trama!
Recomendo para quem gosta de rir durante a leitura mas não quer fazer concessões quanto à qualidade da obra.


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