#9 O mito da beleza, de Naomi Wolf

 

(Rosa dos Tempos, Tradução de Waldea Barcellos)

    Passei mais de um mês lendo esse clássico da literatura feminista e, durante boa parte do tempo, eu sabia que queria fazer isto mas me perguntei o que escreveria sobre uma obra tão repleta de reflexões e que grifei de maneira incansável. Aqui estão as minhas impressões.

A edição que li, de 2018 (o livro foi publicado originalmente em 1991), possui uma apresentação escrita em 2015. Nesse capítulo, homônimo ao livro, a autora explica o “mito da beleza”, que, de maneira bem resumida, refere-se a como o conceito de “beleza ideal” hoje vigente é irreal, por ter sido artificialmente criado para enfraquecer politicamente nós, mulheres e, de maneira mais óbvia, vender produtos e procedimentos cosméticos e assim sustentar um mercado altamente lucrativo. Depois dessa apresentação e de uma introdução (de 2002), em que a autora fala da comprovação de algumas ideias levantadas por ela na primeira edição e de alguns avanços alcançados no intervalo entre edições, o livro é estruturado em sete capítulos:

Em O trabalho, a autora escreve sobre como a QBP (Qualificação da Beleza Profissional) é uma legitimação do julgamento pela aparência das mulheres no mercado de trabalho e os desdobramentos disso em nossas carreiras e vidas.

A cultura foi o capítulo que mais “conversou” comigo, e nele Naomi mostra como a falta de referenciais femininos nesse âmbito impacta na auto-percepção e na auto-estima de mulheres e como, a partir daí, tem início um círculo vicioso em que, por não se verem representadas de maneira coerente e positiva, as mulheres passam a produzir menos conteúdo e perpetuar o mito da beleza de maneira inconsciente.

Em A religião, teoriza-se sobre as pressões que antigamente a religiosidade exercia nas vidas das mulheres ocidentais terem sido substituídas pelas do culto à beleza e às rotinas a ela ligadas ‒ chamadas pela autora de “os ritos”

No capítulo seguinte, O sexo, Naomi afirma que “A força do desejo feminino seria tão forte que a sociedade acabaria por ter de levar em consideração o que as mulheres querem, na cama e no mundo”. Na visão da autora, isso resulta em que a sexualidade feminina é, de maneira geral, fetichizada, reprimida ou combatida por meio da violência na pornografia e de abusos na vida cotidiana.

Em A fome, há uma longa análise sobre transtornos alimentares e como os governos, principalmente dos EUA, segundo a autora, não criam políticas de combate a essa questão de saúde pública pelo fato de essas doenças acometerem muito mais mulheres do que homens, o que, segundo ela, também seria um efeito do “mito” sobre aquela parcela da população. Esse foi o capítulo que achei mais datado e me fez ver com mais clareza um problema que permeia todo livro: o viés da autora, uma mulher norte-americana branca e de classe média-alta (embora ocasionalmente traga algumas menções a dados europeus e mencione mulheres afro-descendentes).

No capítulo final, A violência, é questionada a ética da promoção e da realização das cirurgias estéticas, a sua suposta necessidade e as consequências desses procedimentos na saúde física e mental das pacientes.

Na conclusão, Para além do mito da beleza, há uma sugestão do que as mulheres e as sociedades como um todo podem fazer para derrubar “o mito” e tornarem-se mais livres e politizadas. Uma das indicações da autora que achei mais interessantes foi a do conceito de sororidade, ainda não chamada assim por ela no texto e que, até onde sei, não era algo tão difundido na década da publicação original do livro. Naomi fala em “ganhos materiais que só podem ser alcançados quando considerarmos as outras mulheres como nossas aliadas e não como nossas concorrentes”.

Sendo a escrita acadêmica, em geral, densa demais para mim como leitora, algo que me agradou muito durante a leitura de "O mito da beleza" foi o uso de muitas metáforas em todo o texto, o que dá a ele um caráter literário, além do informativo. Por exemplo, no capítulo introdutório, temos:

 

O mito da beleza foi institucionalizado nas duas últimas décadas como um transformador entre as mulheres e a vida pública. Ele liga a energia feminina à máquina do poder, alterando essa máquina o mínimo possível para aceitar a energia. Ao mesmo tempo, da mesma forma que o transformador, ele reduz a energia feminina em seu ponto de origem. Age assim para garantir que a máquina do sistema de fato receba a energia das mulheres de uma forma conveniente à estrutura do poder.


Agora, vamos às surpresas nada agradáveis sobre o livro e, principalmente, a respeito da autora. Algo que me chocou quando, ao finalizar a leitura, pesquisei mais a fundo sobre “O mito da beleza”: Naomi Wolf é acusada por acadêmicos e jornalistas de ter exagerado os dados sobre transtornos alimentares nessa obra e outras informações em diferentes escritos seus. Eu, pessoalmente, sou a favor da separação entre autor e obra, pois creio que ser humano implica automaticamente em ser incoerente e contraditório em muitos momentos mãããs, gente, este é um livro de não-ficção, né?! Como fica a credibilidade de uma teórica que altera dados para corroborar suas teses?

Ao ler alguns artigos a respeito dela, descobri que Naomi tem muitas opiniões controversas, o que me fez reler alguns trechos e enxergá-los com olhos menos favoráveis. Como dito neste vídeo, Naomi Wolf cativa leitoras ao narrar situações e vivências que muitas de nós compartilhamos, mas acaba por se tornar não confiável pela sua falta de ética no tratamento dos dados estatísticos e também em algumas questões de saúde pública contemporâneas, como a da vacinação, por exemplo.

Se acho que com essas últimas e importantes ressalvas e mais o viés confirmação de Naomi Wolf, ainda vale a leitura? A resposta é sim. Apesar de tudo, para mim ‒ e para o mercado editorial, pois, como deu pra perceber, há muitas edições da obra desde o seu lançamento até hoje ‒ os temas no livro o tornam um importante marco do início da terceira onda do feminismo e, a meu ver, ainda tem relevância ao exortar leitores a se desapegarem do suposto valor da beleza ‒ ao defender que ela está na diversidade ‒  e, principalmente do uso indiscriminado de cosméticos e de procedimentos estéticos e cirúrgicos, já que essa práticas continuam em alta e no caso do Brasil, por exemplo, têm sido cada vez mais “normalizadas”.

Para finalizar, gostaria de deixar algumas indicações de outros conteúdos que consumi durante a minha leitura e a escrita desta resenha e que podem enriquecer também a sua experiência. 

Este documentário, por vezes assustador, me impulsionou a tirar o livro da lista de “quero ler”.

Para um aprofundamento na ideia de que mulheres devem unir-se e criar uma rede de ajuda mútua, com comemorações e outros rituais próprios, além da necessidade de encontrar o próprio tempo e com isso, uma maior clareza interior apesar das demandas externas, sugiro a leitura de “Mulheres que correm com os lobos”, da psicóloga norte-americana Clarissa Pínkola Estés.

Caso ainda não tenha visto, este comercial, mencionado por Naomi Wolf na apresentação de seu livro, ilustra bem a parte da obra dela que, na minha opinião, deve perdurar.

Uma feliz coincidência (ou sincronicidade?) foi, já quase no final da leitura, ter me deparado com o novo álbum de Filipe Catto interpretando Gal Costa, chamado “Belezas são coisas acesas por dentro”, que remete a uma das metáforas usadas por Naomi Wolf no capítulo A religião: “Os ritos da beleza se propõem a vender de volta às mulheres uma imitação da luz que já é nossa”. Ideia linda  da autora e o trabalho do Filipe, idem!

Recomendo para interessados na evoluçao do pensamento feminista. Aliás, este aqui é um ótimo artigo sobre a quarta onda e que explica de forma resumida do que se tratam as ondas anteriores, para quem quiser se situar na linha do tempo do tema.


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