#60 Catadão de leituras de final de ano
(@Artes_Depressão no X-Antigo-Twitter)
Eu não sei procês, mas desconfio que esta época do ano seja parecida com o que é pra mim: fonte de um cansaço generalizado. Meu corpo e minha mente parecem funcionar num ritmo diverso do habitual. Ou será o entorno que acelera e eu que sinto vertigem por não conseguir acompanhar?
Laerte sabiamente disse que é arbitrário (e, portanto, sem sentido) tentar obedecer ciclos definidos pelo calendário gregoriano. Mããs é fato que quando dezembro se aproxima, o comportamento humano me parece mais estranho do que de costume. E o resultado é uma exaustão típica de quem acredita que em primeiro de janeiro tudo vai ser diferêntchí. Isso acontece comigo apesar de saber empiricamente que o ser humano, embora possa até saber o que é bom e o que é ruim, com frequência opta pelo que é mais fácil e, com frequência, pior.
(Gatinho que me representa, no peakpx.com)
Além de um espaço pra reclamar, os parágrafos anteriores foram um prólogo pra contar que entre trabalho, outras atividades, um calor de 30 e poucos graus com sensação térmica de uns 45 e movimento acima da média nas ruas, tenho tido menos tempo e energia pra escrever sobre oslivrotudo.
Isto posto, hoje falarei atabalhoadamente sobre coisas boas que li ou estou lendo mas que não resenhei nem resenharei. Considero-as menções honrosas à lista de melhores do segundo semestre de 2024 ‒ coming soon.
Vi lá na biblioteca que frequento uns livros do espanhol Enrique Vila-Matas, que só conhecia de nome. Decidi ler um romance antigo dele, “Dublinesca” e foi uma ótima experiência.
(Tradução: José Rubens Siqueira. Cosac Naify, 2011)
O livro conta a história de Samuel Riba, um editor aposentado em crise após perder o contato com os autores com quem trabalhou, parar de beber e notar que sua esposa mudou a ponto de lhe parecer uma estranha. Ele decide então reunir um grupo de amigos para ir a Dublin e celebrar o que chama de “fim da galáxia de Gutenberg". ‒ Um funeral não só pelo mundo dos escritores verdadeiros e dos leitores com talento, mas por toda a falta que eles fazem hoje em dia." (p. 114)
O livro tem uma pegada filosófica, um quê Austeriano e, como o título indica, múltiplas referências à vida e obra de James Joyce, em especial “Ulysses”.
A edição da Cosac Naify obviamente está esgotada. Mas pelo que vi, não está tão cara em comparação com outros títulos da extinta editora. Se você gosta de histórias reflexivas e narrativas metalinguísticas, a leitura pode valer muito a pena.
Embora trate de questões profundas com certo grau de complexidade estrutural, o texto foi composto de forma fragmentária, naquele estilo que nos faz querer ler “só mais um capítulo”. Assim, ele flui bem.
O livro de Vila-Matas serviu de introdução para a leitura de um curso de leitura e escrita da UFJF que estou fazendo. O romance que estudamos é “A rainha dos cárceres da Grécia”, de Osman Lins (aperitivo no Insta. Já me segue por lá?).
A edição que estou lendo, de 1976 (foto: Letra Viva Livros).
Existe uma recente, da Companhia das Letras.
Esse livro, que só terminarei de ler em fins de janeiro, tem me deixado embasbacada por vários motivos.
Tal qual Vila-Matas, Osman Lins escreveu uma narrativa fragmentada e metalinguística, porém 1) muito mais aprofundada e apurada que a do autor espanhol e 2) décadas antes de “Dublinesca”.
No livro de Osman acompanhamos a narração em primeira pessoa de um professor de biologia (nunca nomeado) que lê o diário de sua falecida amiga, Julia Marquezin Enone, por quem é apaixonado. Ela é autora de um romance intitulado “A rainha dos cárceres da Grécia”, que o professor analisa em seu diário ao mesmo tempo que repassa acontecimentos e memórias da relação entre ele e Julia.
Na prática, lemos o diário do professor (que inclui reflexões íntimas e também análises profundas sobre escrita), trechos do romance escrito por Julia e notícias de jornal e rádio dos anos 70.
Não é fácil explicar toda a riqueza contida nesse romance. Os acontecimentos e as teorias nele permitem diversas interpretações. E lê-lo em conjunto tem sido uma ótima experiência. É, sem dúvida, uma das minhas melhores leituras deste ano.
Embora Osman atualmente não seja um autor em evidência fora dos meios acadêmicos, ele ainda é conhecido pela peça de teatro “Lisbela e o prisioneiro”, adaptada para o cinema por Guel Arraes em 2003. Eu não li a peça e não me lembro de nada do filme, mas creio que vale conhecer tanto a faceta hermética quanto a mais popular do autor.
(Grua Livros, 2016)
Conheci a escrita de Giovana Madalosso no seu primeiro romance, o impagável “Tudo pode ser roubado”. O livro me foi emprestado pela amiga e companheira de muitas leituras, Raíza. Ela, por sua vez, comprou o livro numa feira, das mãos da própria autora. Giovana vendeu muito bem o próprio peixe e convenceu Ra a apostar na história que até então desconhecia. Pois bem. Livro lido por Ra e por mim, nos tornamos fãs da Gi (temos a pachorra de chamá-la assim, caras de madeira que somos).
Ra me emprestou o outro romance da autora, o também ótimo Suíte Tóquio e anos atrás me presenteou com “A teta racional”, que mostra uma Giovana contista já incrível, fato confirmado a cada romance dela.
Forjando um novo elo na corrente dazamiga da Gi, recentemente presenteei uma outra amiga com “A teta racional”. Antes disso, decidi reler o primeiro conto para me certificar de que seria o melhor presente. Não consegui largar até terminar o livro e gostei ainda mais dele do que da primeira vez.
Minhas histórias preferidas são “XX + XY”, em que uma mãe solo passa perrengues com a cria recém-nascida e encontra apoio onde menos esperava; “Roleta-russa”, que mostra uma galerinha (adulta) da pesada se divertindo com algo perigoso, me deixou no chão após a leitura; “Jardim”, que de maneira singela e em poucas linhas mostra o lado doce das relações familiares; “A teta racional”, que dá um enfoque tragicômico à situação de uma mãe recente que voltou ao trabalho no escritório; e “Suíte das sobras”, uma road trip de mãe e filha tendo de aparar arestas de uma relação conturbada.
Se ainda não conhece o trabalho da Giovana, por favor, remedie isso o mais rápido possível.
Após quase um ano, minha leitura da trilogia de Diana Wynne Jones, que começa com “O castelo animado” e segue com “O castelo no ar”, está completa.
Eu pretendia escrever uma resenha do último livro da trilogia, mas outras leituras impactantes vieram e Wynne-Jones acabou ficando em segundo plano.
“A casa dos muitos caminhos” conta a história de Charmaine, uma menina (de 12 anos, se não me falha a memória) que “ama livros mais do que qualquer coisa no mundo”. Usando essa justificativa, ela se candidata ao posto de bibliotecária no palácio real de Norlanda.
No entanto, sua vida está prestes a seguir um rumo diferente: Charmaine é convocada a cuidar da casa de seu tio-avô William, o mago de Norlanda, enquanto ele se ausenta por uns tempos para tratar da saúde. O problema é que a garota, filha de uma mãe perfeccionista e controladora, nunca aprendeu sequer a arrumar o próprio quarto. O desafio que a aguarda é acrescido de outro: a casa do tio-avô William é encantada.
Essa foi uma leitura menos viciante do que a dos outros dois livros da série. Ao mesmo tempo, foi aquela com que mais me identifiquei. Refleti bastante sobre a dicotomia ficção X realidade enquanto lia.
Aqui, novamente, alguns personagens das outras duas histórias aparecem em momentos cruciais. Elas fecham lindamente a porta desse universo.
Salvei minhas anotações para a resenha mas, como já disse, é provável que não a escreva. De qualquer forma, aqui está o registro de que, sim, os três livros merecem ser lidos.
(Tradução de Milena Martins. Bertrand Brasil)
Eu nunca tinha ouvido falar desse livro nem da autora britânica Nell Leyshon. Até saber que o romance era o escolhido do mês de novembro em um clube de leitura do qual participo, o Vozes Femininas.
Ao ver a capa do livro, achei que ele fosse do gênero jovem adulto e, portanto, uma leitura bobinha. Felizmente, errei. Gosto mesmo é de livros com profundidade e esse é um deles.
A protagonista é Mary. A adolescente de 14 anos trabalha duro junto com as três irmãs e os pais na fazenda da família, que a trata com indiferença e, muitas vezes, com brutalidade. Mary é considerada física e intelectualmente inferior pela família e seu único aliado é o avô, igualmente maltratado pelos outros por ser idoso e, consequentemente, “inútil”.
Mary narra a própria história, e aí reside a engenhosidade de Leyshon, pois a linguagem simples e a visão cândida da menina conferem um ar confessional à trama e a tornam viciante, apesar da brutalidade dos eventos.
Se você quer ler um livro breve porém impactante, “A cor do leite” pode ser o que procura.
Trecho:
ele me encarou. você realmente fala demais.
ah, falo, patrão? acho que eu só falo a verdade.
talvez.
só que as pessoas não gostam de ouvir.
No início de dezembro, também no clube de leitura, foi a vez de “Canção para ninar menino grande”.
Há alguns anos li “Olhos d’água” e, apesar de ter admirado a excelência de escrita de Conceição Evaristo, ainda não tinha voltado à obra dela.
Eu não me interessei quando ouvi falar desse romance mais recente da autora, pois achei que seria o tipo de leitura que me faria passar raiva. O que ficou na minha cabeça da sinopse quando a ouvi por aí foi que era a história de Fio Jasmim, um mulherengo de marca maior e suas conquistas.
Mas eu queria participar do último encontro do ano no clube, portanto decidi dar uma chance para o livro, felizmente.
“Canção para ninar menino grande” é, acima de tudo, a história das mulheres com quem Fio Jasmim se envolve. O livro é recheado com a prosa poética lindíssima de Conceição Evaristo (me impressionou a quantidade e a qualidade das maneiras delicadas que a autora encontrou para descrever o ato sexual nesse livro). Além disso, é uma aula de protagonismo feminino na literatura e na vida, ao mostrar as escolhas das personagens que o sedutor conquista.
Livro recomendadíssimo. A experiência de ler em conjunto, idem. Considero-me uma leitora razoavelmente eclética e, mesmo assim, os encontros do clube de leitura têm ampliado a minha visão. Então fica outra dica: se puder, participe de clubes de leitura. Além do Vozes Femininas, há muitos outros com encontros on-line, cada um com um perfil diferente, para gostos idem.
(Chico Felitti. Foto de Camila Svenson no portal ijnet.org.)
O trabalho do jornalista é meu mais novo vício.
Leitores das antigas aqui no Vivo entre Livros talvez se lembrem de minha paixão por Truman Capote. Seu livro “A sangue frio” me apresentou o chamado new journalism estadunidense. Tomei gosto e depois li algumas obras investigativas brasileiras, como o excelente “Abusado” de Caco Barcellos e “Lua de mel em Kobane”, da Patrícia Campos Mello.
Em novembro, li “Rainhas da noite”, que cruza esse meu interesse por literatura jornalística com outra paixão: reality shows de drag queens ‒ cujo vício contempla Ru Paul’s Drag Race (que elevou o nível em 200% com a versão Global All Stars *-* diga-se de passagem) e as versões brasileiras.
Além de um portal para vídeos do YouTube relacionados à época dos fatos narrados pelo Chico, “Rainhas da noite” foi o início de uma saga pelos podcasts antigos criados por ele, dos quais eu até então só ouvia falar. Meu favorito até agora é “Desconhecido”, do qual derivou o livro “Ricardo e Vânia” (que também pretendo ler em breve).
Voltando a “Rainhas da noite”: o relato do reinado das travestis chefonas do mercado de entretenimento e sexo na Rua Augusta entre os anos de 1970 e 2010 é bem escrito e documentado. Também é surpreendente e necessário na mesma medida. Numa tentativa de defini-lo de maneira simplista, posso dizer que é um “Parque das irmãs magníficas” onde é tudo verdade.
Agora, um caso em que o inverso aconteceu, ou seja, um podcast me influenciou a ler um livro: Clareira (onde ouvi a já citada entrevista com Laerte) foi o responsável por eu ter lido “Arte e medo”. Na primeira temporada, Daniel Lameira e a equipe da Seiva investigam diferentes formas de criatividade e o que ela engloba. A edição é deles.
O subtítulo, “Observações sobre os desafios (e recompensas) de fazer arte” define bem o que os artistas visuais David Bailes e Ted Orland abordam aqui, então não vou me estender.
Preciso dizer apenas que foi uma leitura que me botou pra pensar no ato da escrita, tanto como consumidora apaixonada (de literatura e outras formas de arte) quanto autora do Vivo entre Livros.
Provavelmente o último livro de poesia que vou finalizar este ano, “Risque esta palavra” tem sido um achado, pois comecei a lê-lo para um projeto que nem sei se vai rolar, mas já valeu a pena só por me levar a descobrir a poesia de Ana Martins Marques.
Como convém à poesia, deixo que ela fale por si:
Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingança:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol
(Do poema “Finados”)
Depois dessa lindeza, só mais duas coisas:
Por gentileza, leia poesia e venha me recomendar autores que desconheço;
Inté a próxima edição (especial de Natal) do Vivo entre Livros.
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